Tempos estranhos
Em 13/03/2021
Até tentei escrever algo em dezembro de 2020. O esboço de texto começava assim: “Faz tempo
que não apareço por aqui, que não escrevo nada com a alma. Pudera. Pandemia, pandemia, pandemia... Esse foi o tema que embalou 2020. Cada um com suas válvulas de escape para sobreviver a isso tudo. Uns fizeram lives; outros, propagaram técnicas de yoga ou meditação, ou ainda regras de autoajuda; alguns piraram em silêncio - estes, os mais sensatos.
Teve quem se danou a correr, malhar para exaurir o corpo e tentar aquietar a mente. Mas muitos, muitos mesmo, adoeceram e morreram, ao contraírem o vírus. Mas tudo isso em praça pública, com poucas exceções. As redes digitais passaram de lugar de felicidade a lócus de exemplos de superação. E também a ambientes para estampar as dores. Todo mundo meio ratinho de laboratório com a cabeça entre afundada na água e buscando respirar para sobreviver. Eu me vi em vários desses grupos, em momentos diferentes.
Não publiquei o texto de dezembro. Não queria ser a pessoa que se sente na obrigação de manter as mídias ativas custe o que custar. Publicar qualquer coisa não em move. Nadei contra a corrente. Achei o meu texto vazio, lugar comum, ridículo. Insuficiente para dar conta, mesmo parcialmente, da realidade vivida. Como muitas mulheres, estava cuidando da família, da casa, correndo atrás para não perder meus trabalhos de consultoria. Mas perdi todos, porque demandavam imersão presencial. Depois conquistei outros trabalhos. A gangorra emocional foi uma realidade para a geral, como para mim. Haja esforço para manter o equilíbrio.
Depois dos novos trabalhos conquistados, o mundo virtual invadiu minha vida por completo. Entrevistas por plataformas virtuais via Microsoft Teams. Reuniões sem fim no FaceTime. Conversas com amigas e familiares regadas a vinho, mediadas pelo Zoom. Discussões filosóficas pelo Google Meet. Experimentei, desgraçadamente, várias plataformas, quando queria estar com as pessoas, presencialmente. Mas não havia alternativas possíveis.
Fui assolada por um forte peso na consciência. Meu id brigando com o superego: “Estou triste, desolada com essa pandemia, mas sou privilegiada, não tenho do que reclamar. Tenho que aguentar firme”. Uma culpa cristã, não pior que a culpa colonial, de classe e raça. Em todos os sentidos, me via privilegiada. E teve ainda a culpa de não ter tido covid.
Para tentar acolher a mim mesma, lutei para me referenciar na categoria de gênero. E me ver como a mulher que cuida de filhos, pais idosos, companheiros que não aprenderam a se desvencilhar do machismo estrutural... Mulheres que se viram cozinhando, lavando e passando roupa, limpando chão, e sendo esteio e apoio emocional de toda a família. Muitas adoeceram recolhidas, surtaram caladas.
Foram quatro ameaças de covid na minha casa e fui eu quem proporcionei o bem-estar de todos, no sentido de suprir materialmente o “alimento” para a recuperação. Isso não é para mim motivo de orgulho. É constatação. Muitas, como eu, se viram assumindo papéis que já haviam superado: a de mulheres exclusivamente “do lar”. Dar conta de todas as tarefas domésticas foi o que se apresentou.
Mas nem isso me tirou a culpa de viver num país tão desigual e injusto. De saber que mulheres negras, indígenas, LGBTQIA+, periféricas, estão sofrendo muito mais. Estão morrendo. Não há comparação. Tenho e preciso reunir forças para sempre estar no embates e lutas sociais e políticas, em todas as instâncias possíveis. Nessa reflexão, algo agora me resgata do limbo dos culpados: sempre procurei lutar. Sempre a indignação com as injustiças me moveu. Não votei em genocida. Busco construir uma práxis decolonial. Será que isso é suficiente para não ter culpa? Não mesmo.
Fico aqui pensando o que me fez, depois de descartar o texto de dezembro de 2020, escrever e publicar neste 13 de março de 2021. Acho que foi a esperança. Foi ver que no dia 8 de março Lula teve todas as acusações promovidas pela Operação Lava Jato anuladas. Foi o pronunciamento de Lula, na quarta, dia 10 de março, mostrando que temos alternativa à necropolítica do atual governo federal. Que podemos superar tanta miséria e tragédia. Enxergar brilho nos olhos das pessoas me fez muito bem. Sentir nos “arrobas” das redes digitais o estímulo para planejar o futuro me motivou. Vi o bom humor dos amigos. Fui testemunha de isentões que abriram mão do “muro” para disseminar centelhas de fé no futuro. Sim, somos ainda dependentes de líderes inspiradores. Não somos uma nação de conscientes e politizados que prescindem de líderes. Precisamos de Lula para barrar o genocídio que toma conta do nosso país. Foi um sopro de ar fresco num país abafado como uma estufa.
Naquele texto de dezembro de 2020 que não publiquei, eu finalizava dizendo: “Olho para 2020 se esgueirando para sair de cena, e tento, de toda forma, buscar em mim um pouco de otimismo com o Brasil. Como? Sabemos que dia 1º de janeiro vai chegar com o mesmo presidente do país no poder. E com um nível de aprovação surpreende. Enquanto vários países iniciaram a vacinação, o Brasil apresenta o estranho caso de parte da população negar a vacina, renegar a medicina, a ciência. Quando demos esse looping com queda livre em parafuso?”
Talvez eu tenha, por uma possível ótica psicanalítica, me reprimido em publicar algo pessimista no final de ano. Talvez eu precisasse de um fio de esperança para respirar. Apesar de estarmos com o mesmo presidente genocida, maestro da necropolítica, vejo que temos algo a nos apegar no futuro próximo. Tento vislumbrar que as mortes pela pandemia não serão em vão. Que novos tempos estão por vir. Que viraremos esse jogo.
Isso para mim é quase um “Feliz 2022”. Então quem está lendo esse texto pode entendê-lo como boas-vindas a 2022. Não consigo desejar um feliz 2021 com tudo isso que está acontecendo no nosso país. Desculpem. Tentarei ser mais otimista na próxima.
Ah, e sobre a culpa... Ainda tenho; muitas. Todo dia peço perdão, quando rezo, por permitirmos tantas desigualdades. Sobretudo às mulheres vulneráveis. 2022 há de ser diferente. Só depende de nós.
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