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Desmantelando as bonecas

Eu estava com uns 5 anos. Minha irmã tem 1 ano e oito meses a mais que eu. Acredito que era janeiro, porque nossas bonecas - Suzi e Bete - eram novinhas em folha. Ganhamos como presentes de Natal. Devia ser sábado. Quem sabe domingo... Nossos pais sempre cochilavam à tarde nos finais de semana, de preferência depois da cervejinha. Era para ser um dia comum, tranquilo, enfim.

O fato é que eu e minha irmã, aproveitando a ausência atrevida dos adultos, fomos exercitar a criatividade, desmantelando as bonecas. Não lembro o que passou pela nossa cabeça nem quem teve a brilhante ideia primeiro. O experimento começou pelos bracinhos, depois as perninhas e, por fim, as cabecinhas de Suzi e Bete. Eram bonecas grandes, pois lembro da minha dificuldade para carregar nos braços, com desenvoltura, a loura Bete. Suzi tinha cabelo preto. Na época era moda boneca graúda e rechonchuda. Nada a ver com a esquelética barbie de tempos mais recentes.

O trauma veio se configurando aos poucos. Primeiro não soubemos mais ajustar no lugar perninhas e bracinhos. O pescoço no tronco nem se fala. Olhamos para aquelas bonecas destroçadas e veio o arrependimento. Grande. Entendemos que chegara o fim das duas bonecas e achamos por bem jogá-las fora. Seria o mais digno a se fazer, antes que nossos pais levantassem e vissem a cena.

Corajosas, atravessamos a rua sem asfalto e jogamos o que restava das duas bonecas no terreno baldio em frente de casa. Voltamos, e com a liberdade e a leveza das crianças, já começamos a brincar de outra coisa. Mas o pior estava por vir... Estávamos distraídas brincando no terracinho de casa quando vimos duas meninas - mais velhas que nós e que moravam na nossa rua - passarem com nossas bonecas no colo, inteirinhas, novas, lindas! As meninas, lépidas e acintosas, fazendo pouco da gente. Ficamos perplexas. Como poderia? O que estava acontecendo? As duas meninas desfilavam pra lá e pra cá na nossa calçada, olhando pra gente, mostrando nitidamente as bonecas consertadas.

Claro que corremos chorando para acordar mamãe e papai. Tínhamos certeza de que iriam lá falar com a mãe e o pai das meninas, dizendo que houve um mal entendido, esclarecendo que as bonecas eram nossas, que achamos que elas estavam quebradas, que as meninas precisavam nos devolver Suzi e Bete com urgência. Precisavam dizer que tudo foi um erro! Ledo engano.

Nossos pais disseram: "As bonecas não são mais de vocês. “Vocês perderam”. “Se alguém joga uma coisa fora, não tem mais direito sobre essa coisa”. “Não vamos fazer nada. A boneca agora é dessas duas meninas, e ponto final”. Que decepção...

Tantos anos se passaram e eu e minha irmã, bem como nossos pais, jamais esquecemos esse dia. Nunquinha. Já relembramos várias vezes, rindo muito e rememorando a fatídica cena das meninas passeando com nossas bonecas. Mas dessa história boba ficaram alguns ensinamentos: crianças também sabem fazer pouco das outras, com requintes de crueldade (desculpem o exagero!), ora se não; e que temos de saber perder; que os erros têm consequências e nem sempre podemos voltar atrás.

Não sei se esse episódio foi determinante para meu comportamento de ponderar sempre as minhas decisões, mas certamente esse episódio contribuiu com esse traço meu. Na verdade, as memórias de infância, para o bem ou para o mal, vão formando quem somos hoje. Ah, ia esquecendo de dizer. Outro aprendizado ficou em mim quando fui mãe de dois: não sei se é uma boa coisa dormir à tarde e deixar a cria solta na buraqueira. Repensem! (Risos)

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