top of page

Ser inteira


Ser inteira é um caminho sem volta. Talvez uma sina. Lamento dizer. Ou melhor, felicito-me em te contar isso, porque é mais triste ser metade. Quem dera fosse incômodo para as pessoas serem metade.

Ser inteira é, na verdade, uma arte, que exige persistência e, acho eu, uma certa tendência à honestidade. É ser honesta consigo e com os outros. Acho que é uma predisposição. Ou será uma decisão? Estar plena na vida é um desafio numa sociedade que tudo fraciona. Não se fatia só o tempo, como demonstrou Drummond. Tudo é retalhado.

Lamina-se o conhecimento, as ciências, as amizades, o trabalho, o salário, as refeições (“Coma seis vezes ao dia”. “Não! Volte a se alimentar três vezes ao dia!”), as relações (“Aquele é o meu amigo de colégio”. “O outro é de trabalho”...). Ficamos repetitivos, apesar de parcelados.

Parece uma contradição, mas não é. Quanto mais se divide, menos se tem a sensação do todo – e mais iguais vamos ficando. As mídias digitais que o digam.

Veja: adolescentes estudam cada vez mais matérias isoladas. Incentiva-se isso. No sentido decrescente, eles conseguem contextualizar a realidade política, social, cultural, econômica. Aprende-se picotado, compreende-se em compartimentos. É a regra. É a lição.

E os relacionamentos? Os conselhos: “Melhor não se envolver”. “Vai levando assim”. “Inventa uma desculpa”. “Fala por WhatsApp”. “Faz uma self mostrando onde estava e fica tudo bem”. Leva-se assim, na maciota.

E os que pousam feito mariposas nos cantos? Trata-se da ação daqueles felizes metades que “pernoitam” em vários trabalhos, inúmeros movimentos, fazem bico ali e bico aqui, mantendo a capacidade de não se comprometer com absolutamente nadaaaa. Não fazem isso por necessidade; agem por oportunismo. Fingem que estão em todaaasss. É o cara! É a figura! É a poderosa!

Tem isso por aí... Não contem nunca com as metades felizes. Você morre do coração e estes não estão nem aí...

Ser inteiro não é para todo mundo. Sei bem. Por isso não adianta fazer cobranças. Você, inteira ou inteiro, é sempre quem trabalha mais, compromete-se mais, assume mais, carrega mais o piano... Mas tem a tranquilidade da honestidade com o outro, e ver que o outro percebe você assim, aquela pessoa em quem pode contar, envolver-se, abraçar e sentir-se abraçado. Endorfina pura, sem esforço!

Ser inteira é também saber fechar ciclos, concluir histórias, encerrar etapas – quando não se vê inteira ou inteiro em algo. É duro, às vezes; e libertador, sempre. Melhor do que ser as metades pairando por aí feito tocos...

Não sou católica, mas estudei em colégio católico. E uma das passagens bíblicas que sempre ouvia nas aulas de religião e fazia muito sentido para mim, dizia: “Quente ou frio, morno eu vomito”. Como eu concordava com aquilo. Como eu via sentido nessa assertiva, que me move até hoje.

Vale a pena ser inteira. Estou feliz em ser inteira. Contra muitos, contra as regras da sociedade fragmentária. Vale a pena, repito.

*Imagem capturada no território livre da internet, infelizmente, sem autoria.

bottom of page