Mundinho competitivo...
Sempre tive dificuldade em assimilar o mundinho competitivo. Esse contexto capitalista selvagem que nos quer obrigar a olhar o outro sempre como um concorrente. E a minha estranheza não é de agora. É ainda de tempos inocentes, quando nem sabia que estávamos mergulhando cada vez mais numa sociedade de consumo, num modelo de estrutura de classes em que o pico da pirâmide sai pisando nas camadas de baixo para se manter lá no alto. E vai espremendo mais e mais aquela base até criar uma categoria de gente que está milimetricamente situada na faixa de “extrema pobreza”. Um sistema que contaminou as relações humanas, de forma geral.
A primeira dose de realidade se deu nos meus primeiros dias de treinamento de ginástica olímpica (hoje chamada de “ginástica artística”), lá no Ginásio de Esportes Geraldo Magalhães – popularmente, o Geraldão. Eu com 12 anos. O treinador também era novato, acabara de chegar da Argentina. O nome dele: Juan Carlos D’Andrea. Mal falava português. Já no segundo dia de aula, ele pediu para que levássemos um caderninho e caneta para umas atividades teóricas. Achei o máximo aquilo.
Terceiro dia de aula e lá estava eu toda feliz com meu caderninho novo, sem saber que, de cara, ia riscar a capa do caderno porque escrevi o nome dele “Huan”. (Só um lapso). Nós, atletas, sentamos no chão em círculo e o técnico pediu para fazermos um questionário – e saiu ditando as perguntas no seu péssimo português. Depois deu um tempo para respondermos. Daí entregamos os cadernos a ele, que iria avaliar as nossas respostas.
No treino seguinte, ele reuniu o grupo novamente para comentar as respostas. E, à parte, me chamou. Só a mim. Fiquei ressabiada. (“Será que foi o nome Huan?”, insegurança de criança novata no grupo). Ele esclareceu. O fato é que entre as perguntas estava a questão “Quais seus objetivos com a prática do esporte ginástica olímpica?”. Ele disse que eu fui a única atleta que não colocou como resposta “competir”.
Para mim estar ali significava “aprender sempre novos movimentos”, “ter mais flexibilidade”, “aperfeiçoar a minha técnica”, “ser uma boa atleta”, “realizar o sonho de ser uma ginasta”, “voar” e por aí foi... Pow! Ele fez uma pequena preleção para dizer que eu estava ali para competir. Que esse era o objetivo maior de todo atleta. Que eu teria que desenvolver esse espírito competitivo... Nunca gostei de competir, embora tenha chegado à seleção pernambucana de ginástica olímpica e colecionado alguns títulos e medalhas. Mas disputar campeonatos nunca foi o meu objetivo. Acabou sendo um resultado natural dos treinos e da minha dedicação intensa ao esporte. Lembro que detestava a época de competições.
Mas senti, de perto, a dura realidade das respostas das colegas atletas nos seus caderninhos: competir, competir, competir... As disputas que eram travadas me entristeciam, não raro. Entendi direitinho a intenção do professor em me preparar para o mundinho da competição. Excesso de exibicionismo, bajulação de treinadores e gestores da Federação Pernambucana de Ginástica Olímpica (até por alguns pais e mães de atletas), puxada de tapete, falta de colaboração e espírito de equipe, desqualificação das companheiras e tantas outras coisitas. Em vez de elogiar, era mais conveniente apontar os defeitos, falhas. Claro que não eram todas as atletas que faziam isso. Fiz amizades bacanas ali. Mas não seria exagero dizer que era a maioria.
Depois vi esses modelinhos de conduta se repetirem em vários momentos da vida adulta, sobretudo no chamado “mercado de trabalho”. Com um agravante: a finalidade não era conseguir medalhas e títulos, mas dinheiro, o vil metal, e poder. A coisa fica mais feia quando o dinheiro entra no jogo. Muito feia mesmo. Amizades não importam. Vínculos não importam. Afetos não importam. A regra é competir, destruir o “adversário”, tomar o lugar de fulano, ser mais que sicrano. Ganhar mais.
Vale trapacear, mentir, usurpar, enganar. Vale tudo. E olhe que as estratégias hoje são superlativas, com o universo das redes sociais. E haja mentira, maquiagem, subterfúgio e investimento em “parecer ser” do que “ser”. Retóricas vazias... Valores na lama. Acabei desenvolvendo uma percepção aguçada ou uma criticidade para identificar esses expedientes menos nobres, sobretudo os subliminares - não sem decepção e, às vezes, pena dessa pequenez.
Vez por outra a vida nos coloca em alguma situação de disputa. Vejo claramente que há dois caminhos: você enxerga o outro como inimigo e tenta destruí-lo para vencer; você tem empatia com o outro, faz a sua parte e deixa que vença o melhor, desde que seja uma concorrência limpa e digna. O primeiro caminho é destrutivo e o segundo, construtivo.
Também observei a supremacia da competição ferrenha nas minhas experiências na “cozinha” de campanhas políticas. As amizades e inimizades pareciam chuvas de verão. Iam e vinham, inesperadamente. Pessoas que pareciam “as melhores do mundo” tinham ali a oportunidade de mostrar a sua face raivosa e sacana. Contrainformação, fofoca, entreguismo e muita decepção junto. A briga pelo poder facilmente pode transformar as pessoas, assim como o dinheiro. Ainda bem que eu estava do outro lado, em campanhas que eram de candidatos decentes, honestos e éticos, que também sofriam muito com essa desumanização da política. Também construí algumas poucas e boas amizades ali. Mas é um meio que traz a competição quase como a sua razão de existir. Política é disputa, raramente fraterna.
O tempo foi passando e o que tenho a dizer é que o professor Juan fracassou. Não tenho mais 12 anos e continuo me negando a ser competitiva. A ser integrada a esse mundinho competitivo. Sigo achando que as conquistas são resultado de dedicação, empenho, força de vontade, batalha no bom combate, enfim, muita luta. Logicamente, não ser uma pessoa competitiva gera perdas, sobretudo financeiras. Afinal, estamos inseridos na lógica capitalista e quem é “o cão chupando manga” para construir estratégias e se tornar um “vencedor” desse capitalismo selvagem, é bem valorizado. Mesmo que despenque na escala civilizatória. Lamento.
Ah, mas não ser competitiva também promove ganhos pessoais e afetivos. E conquistas financeiras honestas. Viver com dignidade é luxo só. Não trapacear é paz de espírito. Ser reconhecido profissionalmente e eticamente é o auge! É como medalha de ouro em todas as modalidades. É tão bom sentir no colega ou amigo que ele confia verdadeiramente em você. É igual a atleta no podium! Sem contar que você aprende a ser seletiva nas suas relações e agrega seus pares. (Tudo bem, há os descuidos e, às vezes, temos que aprumar o leme e nos afastamos de um ou outro.). Sinceramente, sou bem feliz com os meus amigos de verdade que não fazem da vida uma competição. Esses são os meus campeões eternos.
* Foto disponível em: http://serrolandiape.blogspot.com.br/2012_11_01_archive.html. Não havia crédito do fotógrafo, infelizmente.