Tempo sem régua
Odeio contar o tempo cronologicamente... Faz dez dias que não. Conto hoje trinta e quatro dias que sim. No ano de mil novecentos e sessenta e quatro aconteceu. Era março naquele. Foi em mil novecentos e oitenta e nove que tudo aquilo. No século vinte danou-se tudo porque. Há um ano e meio que. Há dois anos que nada. Aquilo foi dia nove. O cometa passou por aqui em. Encontrou a curva Tamburello no fatídico ano de. Tem duas semanas que foi. Apenas dois dias de tantos. Quinhentos e quinze anos da. Nasceu e morreu em. Por que a contagem do tempo não pode ser sem régua? Sem datas pragmáticas? Em vez de contar ano, mês e dia, por que não contar experiências? Vivências? E outras medidas possíveis? Tudo seria mais suave. Se alguém perguntasse, qual a sua idade? Minha idade são dez mil beijos. Treze mil abraços. Quatro mil perdões. Dezessete mil sóis fortes na cabeça. Três mil e duzentas chuvas esporádicas. Quinze quilos de incompreensões. Vários novelos de lã de empatia. Novecentos orvalhos caídos sobre a pele. Luas cheias a perder de vista. Milhões de palavras escritas com lápis e caneta e outras tantas digitadas. Milhares de frases ditas e um bocado engolidas. Filas de aviões parados no pátio, cheios de mensagens subliminares. Muitos e muitos filmes curtidos. Colher de chá de amor perdido e achado. Dezenas de viagens. Ruas repletas de encontros. Um oceano cheio de navios abarrotados de sonhos (prontos para levantar as âncoras). Gotas de raivas. Uma cascata de revoltas. Poucas utopias perdidas. Punhados de decepções acumuladas. Xícaras cheias de grãos de realizações. Uma caçamba de caminhão cheia de amigos. Incontáveis risadas. Contáveis lágrimas. Uma fila indiana bem comprida de descobertas. Uma panela transbordando de buscas. Um colar de miçangas de família. Um par de crias. Um coração preenchido. As metáforas diriam mais de mim do que os marcadores do tempo, fragmentos de existência. Entre medidas e desmedidas, viver é uma aventura no tempo, sem régua.
*Imagem da atriz Audrey Tautou, em uma cena do filme "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain" (2001), do diretor Jean-Pierre Jeunet.