Emir Sader: o militante que infla sonhos
Sonhar é um movimento de extrema liberdade. Apesar disso, há funcionamentos humanos –
internos e externos – que movem os sonhos. Existem motivações que os achatam ou inflam: de onde elas vêm? Diga mesmo (você, que está lendo): não parece que há um grande complô na sociedade para pisotear sonhos? E aqui falo especialmente de um tipo de sonho: o de esquerda. Sim, foram “quase” todos jogados na sarjeta. Nem estou mencionando a derrocada do socialismo real, União Soviética, Muro de Berlim e tal... Ah, isso foi café pequeno. (Sabe de nada, inocente...). Refiro-me ao Brasil e aos erros históricos do Partido dos Trabalhadores. Lindo partido de oposição. Bastou ser governo para repetir “muito” do que a direita fazia e faz. Foi uma rebordosa grande para quem lutou nas ruas e se considerava “militância do PT” – expressão que é uma categorização de quem trabalha voluntariamente para construir um país melhor, mais justo, mais fraterno, mais humanizado, com menos diferenças, mais oportunidades... E por aí íamos todos/as. Mas, intencionalmente, utilizei as modalizações “quase” e “muito” para reforçar que ainda há sonhos de esquerda. E, ironicamente, graças ao PT.
Essa reanimação que gerou a escrita aqui tem nome: Emir Sader. Pausa. Contexto: sábado de sol no Recife. Dia 19 de setembro de 2015. Dia de praia. Dia de acordar tarde. Dia de descansar. Dia da família. Dia de revisar texto de trabalho. Dia de dedicação ao doutorado. Dia de não ir para um debate sobre política. (Eu, hein, vou não.). Ops. Fui a primeira a chegar no auditório do SINDPD, junto com uma amiga de sonhos. Aos poucos, rostos cansados dos/as militantes entrando no espaço. Não era um clima de euforia ou alegria. Um certo não-dito de desilusão pairava no ar. Mas Emir Sader entrou no auditório. E então passei a entender os funcionamentos internos e externos que movem nossos sonhos.
Um homem jovem na sua maturidade política e intelectual. Brilho nos olhos. Sorriso sereno no rosto. Andar firme. Aplausos. Falas de boas-vindas. Emir Sader começa já dizendo algo que balança as estruturas: “Sou radicalmente a favor do governo Dilma”. Coragem que move sonhos. Faz críticas contundentes à gestão do governo federal, mas, sensatamente, aponta os ganhos, as conquistas da nação desde a era Lula. Destaca o ódio dos neoliberais ao PT e diz algo que emociona: “Lula é a personificação do Brasil que deu certo, que melhorou a autoestima do povo, as condições de vida, a imagem do Brasil lá fora”. Eu completaria: pobre, pardo, retirante nordestino, operário, sem escolaridade de “nível superior”, sem um dedo da mão... Chegou aonde chegou. Não é pouco o ódio das elites, da direita.
O sociólogo vai energizando a plateia e toca nos pontos nevrálgicos que ultimamente arrefecem a militância: os oligopólios de mídia ainda inabalados, as medidas impopulares que atingem os/as trabalhadores/as, o denuncismo contra o PT, a inabilidade do governo em se comunicar com a sociedade, as concessões políticas aos partidos de direita, os cargos, enfim. Mas, aos poucos, vai revelando de que lado a esquerda está, gota a gota: “Bota dinheiro na mão do pobre que ele não vai mandar para o HSBC na Suíça. Ele vai produzir, investir, gerar emprego aqui”; “Entre a realidade concreta e a consciência social está a mídia”; “Política é convencimento. Precisamos fortalecer a comunicação pública, as mídias alternativas”; “O PT não encerrou o seu ciclo ainda. Um ciclo encerra-se quando algo melhor está por ser iniciado. O que há por vir? O neoliberalismo? Alckmin?” (Risos da plateia); “Os movimentos sociais têm que lançar seus candidatos nas próximas eleições”. “A grande discussão do Brasil não é o tema da honestidade, mas a luta de classes”; “Temos que refundar o Estado brasileiro, fazer um congresso com a cara do povo”; “A crise do PT é a crise de todos os partidos progressistas da América Latina”.
Tantas e tantas reflexões importantes, que, mais do que na mente, ficaram no coração sangrado da militância. Sabiamente, Emir Sader falou pouco. Ele quis ouvir a voz sempre silenciada da plateia. Ele quis dar voz e vez aos carentes de espaço político de debate. E assim foi a manhã toda. Desabafos, palavras de ordem, hasteamento de bandeiras de luta, ficha de filiação circulando, apelos para as devidas causas, reflexões, interrogações, memórias, histórias, angústias, socorros... Quase lágrimas, quase risos. Tudo estava ali. Ele ouvia quietamente, pontuando, ao final, algumas falas, anotando demandas. Parecia uma grande sessão de terapia de simpatizantes e militantes do PT, de esquerdistas. Sim, ele foi mais para ouvir, humildemente.
Passo a passo, fui vendo que estava ali não como uma leitora dos livros do sociólogo e cientista político Emir Sader, e do irmão dele, o grande Eder Sader. O que me fez sair de casa naquele sábado ensolarado foi a possibilidade de inflar meus sonhos cidadãos, tão capengas nos últimos tempos. Algo me dizia que – mais do que o fogo do sol, uma injeção de sonho seria melhor para o bronzeado da alma. E foi. No fim do início da tarde daquele dia, percebi tanto brilho nos olhos das pessoas, que vi mais sentido no tema do debate: “O Brasil que queremos”. Esse Brasil e essa construção que só dependem de cada um de nós. A esquerda ainda não chegou lá. Mas a consolidação de um país melhor está em processo. Senti na pele, agora também bronzeada pela luz de Emir Sader, o que muitos militantes disseram no debate: “Estamos acuados!”; “Estamos aceitando dizerem que somos todos ladrões!”; “Não somos ladrões!”; “Estamos nos calando!”; “Não podemos aceitar isso!”; “Não estamos lutando para defender os honestos!”; “Cadê nossa garra?”; “Há uma investida da mídias e partidos para a gente se envergonhar, calar!”.
Sou parte desses envergonhados e “quase” calei nas últimas eleições. (Eu e as minhas modalizações: quase). Em tempo, caí em campo, fui fazer campanha, morrendo de medo de um retrocesso político no país. E foi exatamente sobre esse momento impactante das eleições presidenciais de 2014 que Emir Sader encerrou a sua fala: “Gente, o meu coração se alegrou muito quando Pernambuco virou as eleições aqui no segundo turno. Pernambuco, terra de Lula, não poderia ser comandado”. Assim, o homem que infla sonhos encerrou a sua fala, correndo para o aeroporto a fim de seguir na sua militância por outras cidades. E assim nós voltamos para casa transbordando de energia solar. E uma certeza: é necessário ter um lado, sempre. O muro jamais me pertenceu.
*Reprodução de foto de Sebastião Salgado, capturada da internet.