Vovó Macaca
Hoje penso que o gosto pelo mundo dos significados e sentidos nasceu da influência nada convencional da minha avó materna. Imaginemos uma vovozinha ensinar a todas as gerações de netos a chamá-la de Vovó Macaca. Quando um neto a avistava de longe já gritava: “Vovó Macaca!”. Para o espanto dos desconhecidos que passavam perto - e alegria dela, claro. Lembro de pessoas perguntarem se não achávamos “falta de respeito” chamar a avó de “macaca”. Ou se ela não ficava com raiva e tal. Bobinhos... Não sabiam que era ela mesma quem incentivava... De todo jeito, tentávamos explicar... “É que ela fazia caretas e macaquices para a primeira neta que nasceu e acabou ensinando à bebê que ela era Vovó Macaca. A vovó que fazia macaquice.” Vovó era brincalhona e engraçada (se não pisassem nos calos dela). Preferia gargalhar a sorrir.
E ninguém pense que vovó rejeitava o seu nome ou a sua identidade. Ela gostava do nome dela. Tanto que em uma época começou a fabricar produtos de limpeza caseiros, que batizou de “Produtos N.A.S.P.”, as iniciais de Nair do Sacramento Paixão. Lá estava ela brincando mais uma vez com as palavras. Vovó sempre foi inventiva, adorava inovar e burlar o esperado. Ela era mesmo incomum. Por exemplo, chamava maionese de “creme williams”. Quando planejava algo e dava errado, dizia: “Fiz um plano e virou um planeta”. Quando tinha uma decepção ou raiva: “Eu me vi e me desejei”. Adorava trocadilhos, frases novas, neologismos. E não gostava de referendar o lugar comum. Nomeou os filhos de Lucy, Leny e Necy. Mas o filho homem denominou Jair. Há, não... Seria muito óbvio terminar também com y. Ela sempre preferia quebrar as expectativas.
Gordinha e baixinha, fazia humor de sua própria imagem. Mas exigia respeito. Um dia chegou em casa me contando que foi passar na borboleta (hoje, catraca) do ônibus e entalou. Nisso viu uma mulher rindo dela. Aliás, tendo uma crise de riso com a cena. Ela disse que foi se aproximando da mulher, calmamente, chegou bem juntinho e disse: “Tá vendo eu gorda assim? Mas minha pele é bem lisinha, não tem nenhuma ferida. Enquanto a sua... Olha seus braços cheios de pereba...”. E justificava a mim, cheia de razão: “Imagine uma sujeita querendo rir da minha cara!”. Morri. Até hoje fico reproduzindo a cena, pensando como ela teve coragem de fazer aquilo. Todo mundo no ônibus olhando... Aiiiin... Como uma das netas mais apegadas a ela, ouvi muitas histórias de Vovó Macaca e presenciei outras tantas. Na verdade, passei a ser uma observadora daquele comportamento singular. Parecia estar em um mundo fantástico.
Um outro causo real dela, que é nosso deleite até hoje lá em casa, foi quando o meu tio, que morava com ela e era ainda solteiro, estava se arrumando para ir ao trabalho e ficou incomodado por ter vestido muitas peças brancas de roupa. Então achou por bem perguntar: “Mamãe, não estou parecendo um médico? Assim todo de branco, sei lá...”. Vovó: “Que nada, meu filho. Não tem isso, não. Agora todo mundo que veste branco é médico? Oxente!”. Meu tio ficou satisfeito com os argumentos e saiu de casa todo feliz da vida. Ela disse: “Vou te levar no portão”. Vovó deixou ele se distanciar mais um pouco, sempre acenando e dando tchau... Foi então que resolveu tirar onda com o meu tio e falou em alto e bom som: “Doutor Jair, vai chegar cedo em casa hoje?”. Meu tio foi embora andando e morrendo de rir pela rua... Meio envergonhado, lógico.
Vejo esse traço espirituoso e bem-humorado de vovó em várias ramificações da família Paixão. O lado inventivo também. Cada um do seu jeito, carrega essas heranças. Adoro isso. Por essas e outras, não consigo associar a minha avó a momentos dramáticos ou tristes. Nem mesmo quando as doenças da idade chegaram e a levaram para um outro plano. Sim, porque ali não era mais Vovó Macaca, aquela mulher empoderada que separou do meu avô e ficou morando só por muito tempo, sem nunca se queixar de solidão. Bem-resolvida e libertária, ela era assim. Embora fosse meio casada com a Igreja Católica, inclusive cantava no coral durante as missas. A voz dela era a que mais se destacava. Todo mundo comentava: “Sua avó não é aquela que canta na igreja? Vozeirão”. Na minha criancice, não sabia se era bem um elogio, mas o fato é que ela era quem mais aparecia. Autoestima fortalecida estava ali.
Uma vez começou a ensaiar cantoria com o grupo jovem da igreja, lá na casa dela. Assisti a alguns ensaios. Disse que havia composto uma música para o grupo e começou a cantar, sempre bem alto. O trecho inicial dizia: “Tenho em casa desde moça/Um zoológico jardim/O qual eu trato com cuidado/Com prazer que não tem fim/São bichos tão mansos/Que já me conhecem/E quando não me veem/Também se entristecem...”. Por sinal, seus animais de estimação eram uma tartaruga e um cágado (até hoje não sei a diferença). Viviam soltos no quintal. E adorava planta. Sim, ela era muito original. E autêntica. Desejo muito que eu e todas as gerações Paixão carreguemos um pouco desse lado criativo e bem-humorado de Vovó Macaca. Pelo menos é a certeza de que não seguiremos a manada. Só a macacada, que é bem mais interessante.