Eu, Velázquez e Las Meninas em Madri
Viagem à Espanha. Ano: 2015. No roteiro, Madri – primeira parada. No pensamento, o Museo del Prado. No coração, a vontade de chegar perto do quadro Las Meninas, de Diego Velázquez. Sonho realizado e uma certeza: as viagens são como pães para saciar os desejos da alma e as inquietações da mente. Cada lugar leva a verdadeiros instantes de alumbramento, que o Houaiss define como “sopro criador”, “revelação”, “inspiração”, “estado de quem se deslumbra”, “maravilhamento”. Sim, maravilhamento. Foi essa sensação que me tomou ao entrar naquele prédio neoclássico construído em 1785. Um livro aberto à minha espera. No primeiro piso, a obra-prima Las Meninas me aguardava.
Velázquez entrou na minha vida pela porta acadêmica, há quase dez anos. Ali, nos tempos idos, estudava mestrado e o filósofo francês Michel Foucault me apresentou a tela por meio do livro “As Palavras e as Coisas”, no qual faz uma interessantíssima reflexão sobre as várias possibilidades de olhares e interpretações da tela do pintor espanhol. Esse deslindamento feito por Foucault foi revelador para o meu estudo na época. Perguntei lá nas páginas da minha dissertação: qual a lógica que move esse olhar para o objeto? No caso, o meu olhar sobre o tema de pesquisa. E discorria sobre a imbricação do pensamento do autor e o meu estudo.
Mais do que uma análise discursiva sobre a obra de Velázquez, Foucault traz à tona aberturas de frestas para entender a realidade, novos paradigmas para enxergar o mundo, o não limite para novas visões. A liberdade de interpretar, enfim. Mostra que não apenas é possível lançar inúmeros olhares sobre uma realidade, mas que as possibilidades de olhares são inesgotáveis, que a relação da linguagem com o objeto é infinita, que se deve ir além da materialidade aparente, do concreto. No livro, o filósofo descreve incansáveis alternativas de representações, significações, intenções, interpretações e traduções das imagens da tela Las Meninas, sob a suposta ótica do pintor, dos personagens e do espectador, enfim...
Como bem descreveu Foucault, “Velázquez compôs um quadro; que nesse quadro ele se representou a si mesmo no seu ateliê, ou num salão do Escorial, a pintar duas personagens que a infanta Margarida vem contemplar, rodeada de aias, de damas de honor, de cortesãos e de anões; que a esse grupo se pode muito precisamente atribuir nomes: a tradição reconhece aqui dona Maria Agustina Sarmiente, ali, Nieto, no primeiro plano, Nicolaso Pertusato, bufão italiano”. Está lá a divisão de classes da época, com a representação da corte, dos empregados, dos bajuladores da nobreza, e, claro, dele próprio, Velázquez, como o signatário da classe dos artistas. Há também duas figuras que aparecem refletidas no espelho: o rei Filipe IV e sua esposa Mariana.
O artista espanhol é considerado o “retratista” ícone da corte espanhola do século 17. Talvez por isso essa tela seja também um autorretrato o homenageando, por um lado, e, por outro, revelando o lugar do artista naquela sociedade dividida. Las Meninas é, acima de tudo, uma pintura que deixa inúmeras lacunas: “Quem é a figura principal? O que os personagens fazem naquela cena? Por que os atores principais da corte estão apenas refletidos no espelho? O que Velázquez pretendia exprimir? São essas e outras nebulosidades que tornam a obra enigmática e interessante.
Deixei Velázquez para o final. Primeiro conheci o espetacular acervo do outro brilhante pintor espanhol, Francisco de Goya. Belíssimo. E tive uma sorte grande em estar em Madri na época em que a emocionante exposição temporária do belga Rogier van der Weyden chegava em Madri, com pinturas que vão me marcar para o resto da vida, pelas expressões faciais de sofrimento das figuras que saltavam das suas telas. Alumbramento. Concordo com Foucault: “...a relação da linguagem com a pintura é uma relação infinita.” A cada lembrança, novas palavras querem ser significadas nesta escrita.
Meu sentimento ali - entre tão belas obras de arte, no meio de tanta história, imersa naquele acúmulo de anos passados - não pode ser esgotado por palavras. Mas poderia ser expressado por uma reprodução do que disse Foucault: “Não que a palavra seja imperfeita e esteja, em face do visível, num déficit que em vão se esforçaria por recuperar. São irredutíveis uma ao outro: por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam...”. A cada olhar, um novo descortinar.
Primeiro piso do Museo del Prado e lá estava a realidade (ou a metáfora) do que havia lido em Foucault, com seus cerca de 3,2m por 2,76m, criada em 1656, tinta a óleo, localizada em espaço nobre da sala. Las Meninas. Imponente. A vida real brigando com o meu imaginário. Os escritos de Foucault e a prova dos nove. Eu diante de uma das obras mais analisadas do mundo ocidental. Não só isso: a tela que me inspirou na dissertação de mestrado e referendou a minha escolha pela análise do discurso.
Uma professora com uma turma de uns dez alunos, entre cinco e seis anos, todos sentados no chão, ministrando aula ao vivo e em cores em frente à tela de Velázquez. Apontava para cada detalhe da pintura e as crianças prestando atenção. Todos respeitaram e esperaram a aula acabar para chegar mais perto da obra. Depois disso, a curiosidade assume o controle da razão e os olhos ficam atentos para encontrar um pouco de tudo o que foi dito sobre a tela e, quem sabe, ver um pouco mais, tentar ver além. Quem sabe... O Houaiss tinha razão: “sopro criador”, “revelação”, “inspiração”, “estado de quem se deslumbra”, tudo isso junto estava ali, comigo e dentro de mim.
A atmosfera daquele momento de alumbramento convida – por meio da apreensão do que traduzem Velázquez e Las Meninas – para a necessidade de sempre ir além das aparências, das pinceladas na tela, da análise das palavras como coisas e das coisas enquanto palavras. Contaminado por uma visão de mundo própria, história de vida, condicionamentos existentes, ditos, não-ditos e já-ditos, cada um que se coloca diante de uma tela como Las Meninas vai ter sua interpretação, que pode coincidir com tantas outras ou não.
Uma luz diferente se acenderá de uma maneira para cada um. “É, talvez, por intermédio dessa linguagem nebulosa, anônima, sempre meticulosa e repetitiva, porque demasiado ampla, que a pintura, pouco a pouco, acenderá suas luzes”, como disse Foucault, em As Palavras e as Coisas. Nenhuma verdade é absoluta, mas há uma certeza: viagens são sempre transcendentais para o espírito. Viagens e livros se entrelaçam. Sim, livros também são pães para saciar os desejos da alma e as inquietações da mente.
*Reprodução da pintura Las Meninas, de Diego Velázquez.