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Ah, essa nossa língua ingrata


Uma amiga, doutora em comunicação, me contou que foi perguntada numa lista de e-mail coletiva, tipo “yahoogroups”, se poderia participar de um tal evento acadêmico. Como não poderia estar presente, tascou uma resposta, também grupal: “Poço não”. Depois que teclou no maldito “enviar”, viu a besteira que havia feito. “O que fazer?”. Seria o fundo do poço para o seu bom nome como teórica da área?. “Melhor mandar outro e-mail com uma errata?”. Afinal, era uma lista de professores, pesquisadores, gente crítica... Mas resolveu ignorar, como se nada tivesse acontecido. Meio joão-sem-braço. Não se sabe as ressonâncias que o poço teve... Sei que gostei da estratégia dela. A não-resposta deixa nas entrelinhas algo como “Ela é tão ocupada que respondeu distraidamente”. Ou “Foi erro de digitação, jamais escreveria isso”. Ou ainda: “Deve participar de tantos grupos acadêmicos que nem tem tempo...”. Deixa no ar uma fantasia intelectual, que é bem melhor do que a realidade nua e crua da errata. Vai que ninguém percebeu...

Outro dia, por mensagem de texto no celular, um ente familiar me perguntou: “Já comprou as fraudas para o chá de bebê?”. Dessa eu me vinguei mentalmente: “Quem manda assistir Jornal Nacional todo dia? Que só fala de Petrobras, corrupção e fralde?” (Ops!). “Já disse que esses jornais deseducam”. Mas entendo que a nossa língua não é fácil, mesmo. São tantas regras e exceções que às vezes dá um tilt. Com o Novo Acordo Ortográfico, então, tudo que demoramos anos para introduzir na cabeça tivemos (temos, ainda) que desconstruir de uma hora para outra. Ficou uma neura e, para não errar, as pessoas começaram a excluir todos os acentos, hifens... Observo que se prefere não pecar por excesso. Resultado: infra estrutura, chapeu, constroi, auto estima... Tudo de menos e separado...

Meses atrás, numa mesma semana recebi dois e-mails de remetentes diferentes. Nos dois, encontrei: “Agente vai se reunir para resolver...” e “Agente sabe que essas coisas acontecem...”. Extravasei postando no facebook um "meme" com Batman dizendo a Robin: “Você não é do FBI! Pare de escrever agente!....” Aí depois veio um outro e-mail: “Digo diante mão que essa questão...”. Tenho raiva porque quero seguir na leitura do texto no corpo do e-mail e meu olho fica voltando para a palavra errada. Leio várias vezes “Diante mão, diante mão, diante mão...”. Mas a culpa é das ciladas da nossa língua. Quem já viu criar uma expressão tão estranha como “antemão”? Por que “mão” entrou na história da antecipação? Nada a ver...

Mas o pior foi quando eu, em uma oficina de comunicação, escrevi “eventos intinerantes”. Alguém me corrigiu: itinerantes. Puf. “Ah, desculpe”, disse. Fiquei com pressentimento de que escrevi a palavra desse jeito muitas vezes na vida. Será? Quis retomar em pensamento os momentos em que precisei escrever itinerante. Não deu. Não localizava. Desisti. Lembrei desses episódios porque bem recentemente fui almoçar com um casal amigo e deslizei na língua falada. Não sei como fomos parar no assunto, mas o fato é que dizia respeito à falta de turismo na Arábia Saudita. Foi quando cravei um: “Eles nunca requiseram...”. Puf, puf, puf... Como pude dizer aquilo? Afinal, requerer não é derivado de querer. Eu sabia disso. Vi que a palavra errada falada é pior do que a escrita. O eco fica reverberando na sua cabeça... “Quiseram, quiseram, seram, seram, eram, eram, ram, ram...”. Culpei - para mim mesma - a caipiroska de morango. Segui a estratégia da minha amiga e fingi que nada aconteceu...

Esses erros, tropeços da língua, ciladas textuais, abismos gramaticais, armadilhas ortográficas, enfim, nos fazem ver, cada vez mais, como Paulo Freire tinha razão. Comunicação é diálogo, é troca de saberes, é busca por emancipação. Nesse sentido, a norma culta da língua fica em segundo plano. O que vale mesmo é a intenção de se comunicar bem. Portanto, estamos todos abonados. Isso é o que importa.

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