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A sociedade que estranha a honestidade


Sempre achei constrangedor gratificar quem é honesto. Explico-me: recompensar quem encontrou e devolveu um bem perdido de alguém, como documento, carteira de dinheiro ou objeto de valor. É praxe as pessoas darem um “agrado” a quem presta uma grande gentileza dessa. É como se a honestidade não fosse mais um dever dos cidadãos e cidadãs. Mas ser honesto é ou não é uma obrigação? Incomoda-me sobremaneira quando a mídia, em especial a televisiva, se esmera em fazer um estardalhaço sobre o tal gari ou servente que encontrou uma mochila de dinheiro e devolveu aos proprietários perdulários. É um triste espetáculo. Como se dissessem: “Vejam esse estranho pobre honesto! É uma raridade! Isso não é normal!”. Parece que estão falando de um ET.

Esse tema me inquietou ainda mais quando a minha filha perdeu um smartphone num dia entre tantos outros do ano de 2012. Um homem sem recursos financeiros, funcionário de uma pequena empresa privada, havia encontrado o objeto. Fomos avisados da boa notícia. Ela ligou e marcou para buscar numa segunda-feira. Tudo certo. Mas, a partir daí, comecei a ouvir comentários que me incomodaram, vindo de pessoas que souberam do ocorrido: “Que homem honesto esse que devolveu uma coisa tão cara”. Outros comentavam: “Ele podia ter ficado com um aparelho caro desse”. “E ele é humilde!”. E depois a pergunta derradeira: “Vai dar quanto a ele?”.

Por que gratificá-lo? Para todo mundo era natural recompensá-lo, como se fosse o desfecho normal do episódio. Cheguei a ficar em dúvida se deveria retribuir o favor com uma gratificação. Mas imaginei a minha filha agradecendo e dando dinheiro ao homem-honesto. Fiquei com vergonha da cena. Refleti também se isso seria “pedagógico” da minha parte, em relação à minha filha. Pensei em mim, dizendo: “Filha, pague a ele, pois ele foi muito honesto”. Antes de ir buscar o aparelho, na segunda, testei a minha filha: “Será que devíamos dar uma gratificação a esse homem?”. Ela disse, bem despretensiosamente: “Nada, mainha!”, sem nenhum drama. Reforcei, mais tranquila: “Olha, então agradeça muito, muito mesmo a ele, pela atenção e gentileza!”. Brincando, ela disse: “Vou até chorar”. O homem-honesto não estava na empresa quando ela pegou o aparelho.

Paro para pensar e vejo que a obrigatoriedade e a cobrança pela gratificação, obviamente, só existem quando o benfeitor-honesto é das classes mais pobres. Aí vem o não-dito da questão: “Ele é pobre, precisa de dinheiro, poderia ter ficado com o objeto, ter vendido e ganhado uma graninha. Mas, não, resolveu ser honesto. Tinha tudo para ser desonesto, levar vantagem.”. Há um preconceito nisso, uma discriminação de classe. Lembrei de um taxista que um dia me conduziu do aeroporto até em casa. Ele desabafava para mim: “Que cara burro! Acabou de achar uma carteira cheia de Euros no táxi e entregou à dona. A gringa miserável não deu nada a ele. Não mandei ser burro!”. Muitas vezes, é isso que as pessoas acham. Que é burrice ser honesto.

Recordei também uma passagem do livro O Filho Eterno, do genial Cristovão Tezza, quando narra o arrependimento do autor por ter dado uma gratificação em dinheiro aos policiais que encontraram o seu filho, com Síndrome de Down, que havia fugido de casa. Ele teria dito: “É uma contribuição e um agradecimento do trabalho de vocês”, relata no livro. O autor diz no texto, ainda, que ao fazer isso sentiu uma “agulhada no coração”. E continuou a sua autorreflexão no livro: “O que você faria se um aluno lhe oferecesse dinheiro porque a sua aula foi boa?”. “Você percebeu a extensão do que você fez?”, escreveu. Depois ele conclui: “Você simplesmente abriu mais uma porta da corrupção”. Tezza narra que anos depois houve outro desaparecimento do seu filho e, dessa vez, “não corrompeu ninguém”. Apenas “enviou um fax ao comando da corporação com fartos e merecidos elogios ao trabalho da polícia, citando o nome do cabo e do soldado responsáveis”.

Essa “imagem” do livro de Tezza consolidou a minha decisão. Não vou voltar atrás e oferecer dinheiro ao homem. Há sempre uma luz que acende e antecede as escolhas e decisões. Há sempre a razão e o coração a seguir. Não é fácil resistir às pressões sociais para pagar pela honestidade das pessoas que devolvem um bem perdido. Sim, porque sempre há uma pressão explícita ou velada. As repetições das posturas acabam por dar um ar de normalidade aos processos mais absurdos. Respirei, aliviada, por não ter reproduzido essa prática. A honestidade é uma escolha de quem tem retidão de caráter, integridade, ética. O valor da honestidade é simbólico. E isso independe da classe social! Não tem relação direta com ter ou não ter dinheiro. Aquele homem era tão honesto que nem estava lá quando a minha filha foi buscar o celular. Talvez fosse um constrangimento para ele ser pago por sua honestidade. Ele deve ser um homem feliz, seguro dos seus princípios. Triste, sim, é a sociedade que estranha a honestidade das pessoas.

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