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Metáforas sobre o amor e a Amazônia


Amor que surgiu nas entranhas de um rio. Naquele dia, era o Rio Capibaribe que testemunhava o momento em que a lua ficou cheia e que a estrela era cadente. Amor que cresceu entre as águas, que banhavam Aracaju, Fernando de Noronha, Pipa, Japaratinga, Itaparica... Paradoxalmente, na fluidez foi se concretizando um amor, que traz um lado abstrato, uma vez que a distância faz o par romântico lembrar e relembrar encontros, perdendo-se em memórias. E foi envolta nesses pensamentos que a amada, tal qual uma caboclinha, navegou sozinha pelo Rio Amazonas.

Mágico, lendário, inspirador. Grandioso e autossuficiente. Majestoso. Estava lá, com suas águas barrentas, o Rio Amazonas, como um adolescente ainda em formação. Impressionante a simbiose entre rio e floresta. A harmonia é perfeita. Neste mês de maio, deste ano de 2008, o Amazonas está na sua fase de maior cheia. Pediu uma trégua às comunidades ribeirinhas, arrastou toras de tronco, moveu galhos e árvores. Mas o verde parece entender as necessidades das águas - não se revolta, nem resiste. E o rio corria rápido, como que para ninguém o pegar. Ou para provar que é soberano, tanto quanto o amor para os amantes.

E neste cenário exuberante, lá ia a mulher, que mais parecia Iracema dos lábios de mel. Ela não podia deixar de pensar no amado, pois o amor deles surgiu sobre as águas, entre as águas. A voadeira ia abrindo caminho nas águas pardas, com a mulher dentro, sempre acompanhada pelas gaivotas, garças brancas, garças morenas, garças africanas, piaçocas, mergulhões. As aves estavam abençoando os pensamentos da pastorinha, no homem da vida dela.

A delicadeza das aves lembrava o carinho do amado com ela. A leveza, os momentos em que ele a ensina a dançar. A suavidade, o cuidado do amado para não a magoar. O toque das patas nas superfícies das águas e copas das árvores, os dengos dele para ela. O voo, a certeza que ele dá, de que o amor verdadeiro liberta. O encontro do bico com as plantas e grãos, os beijos e abraços. Nisso, os tambaquis, tucunarés, piranhas, surubins, curimatás, curuatãs e pacus, que estavam do lado oposto, submersos no rio, eram cúmplices dos bichos de pena: todos concorriam para que o homem-boto permanecesse presente. Nem que fosse na imaginação da fêmea.

Tal qual Iara, que se banhava nua nos rios e lagos amazônicos, sonhando em encantar os machos, a sinhazinha continuava desbravando o rio, desejando também prender seu amor para sempre. Nessas alturas, a embarcação - pequena e precária - já estava adentrando os lagos Macurani, Paranapanema, Aninga e Limão. E ela parecia navegar em busca de seu amor, mesmo sabendo que ele estava longe. O cenário esplendoroso fazia a solitária viajante desejar voltar àquele lugar com o seu tupã. Como seria bom estar com ele ali... Sempre nas águas, que pareciam um bálsamo na vida dos dois.

E a cunhã-poranga seguia navegando e amando. Refletia sobre o fato de a natureza e o amor aproximarem o ser humano de Deus. Verdade. Ela sentia a presença de Deus e do seu amado a todo momento. Distraída nessa contemplação, mal sabia que outro espetáculo da natureza a esperava: as vitórias-amazônicas. Percebeu como foram sábios os homens que eliminaram o nome “régia” da planta. Como poderiam deixar de homenagear o berço dessa flor selvagem? A mãe Amazônia gerou muitas dessas preciosidades...

E lá estavam as vitórias-amazônicas, impávidas, lindas, enormes! Pareciam várias luas verdes. Algumas chegam a dois metros de diâmetro. Como a natureza é perfeita! Mas a amada não poderia repetir o feito de Naia, que sucumbiu no rio tentando alcançar o reflexo da lua. Conteve-se em apenas olhar e tocar na superfície daquelas esferas gigantes. Mais uma vez lembrou como o amado iria se emocionar apreciando o mar de vitórias-régias dentro do rio. Sim, porque a lua também faz parte dos encontros amorosos dos dois indiozinhos apaixonados! Sempre a lua os acompanhava. Ele havia até oferecido uma estrela para ela, do lado esquerdo da lua! E as vitórias-amazônicas têm ao lado uma flor perfumada que parece mesmo uma estrela. Foi por isso que essas deusas do Rio Amazonas, essas luas verdes a enlevaram tanto...

Diante do espetáculo cênico, impossível não meditar sobre a insignificância e o poder da raça humana, contraditoriamente... Insignificância, por ser tão minúscula para tamanha fauna e flora. Poder, porque, apesar da pequenez, pode destruir tudo, pela cobiça, ganância, covardia. Ela se sentiu como uma parintitin, uma apurinã, uma sateré-mawé, uma yanomami, resistindo à aculturação, lutando bravamente contra os predadores. Pensou ainda em como a espécie humana quer destruir o amor pela guerra. E concluiu: seu amor pelo amado é uma prova de que o amor verdadeiro existe e se impõe às adversidades.

Sozinha como uma orquídea branca, rara, da Amazônia, esperando a qualquer momento ser colhida por seu pajé, ela viu que era hora de voltar. A cunhã-maru lamentou sair daquele paraíso. Mas a voadeira já estava retornando pelo arquipélago Tupinabarana, ao redor de Parintins. Com o espírito alimentado pelas paisagens inspiradoras e as lembranças do amado, a mulher viu que era melhor mesmo voltar. Como ela poderia viver naquele paraíso sem o amado? Como poderia sobreviver sem os seus beijos, abraços e carinhos? Sem suas mãos nas mãos dela? Não, ela não aguentaria a saudade... Reverenciou a Amazônia, quase chorou de emoção, e voltou feliz para os braços do grande amor da sua vida.

*Escrevi esse texto em maio de 2008, depois de passear de voadeira pelo Rio Amazonas.

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